I've seen things you people wouldn't believe ...

Autoria: Sandra Simões
Data: Setembro 25, 2017


“I've seen things you people wouldn't believe ...”

É a minha cena preferida do Blade Runner … e a razão porque adoro os Trilhos. Cada prova é uma paisagem. Cada paisagem é uma sensação. Cada passo, cada serra, cada subida/descida, é uma superação. E uma analogia de vida. Ambas são irregulares. Com picos altos e zonas baixas. Aos quais vamos reagindo … descobrindo como percorrê-los. Ganhamos, umas vezes e perdemos, outras vezes.

Em Serra d´Arga-2017 o nível de confiança era baixo: desistência nos 100 km do UTSM e em Riano. Falta de treino desde Maio e 3 kg a mais. Odeio treinar no Verão e odeio ter cuidado com a comida. Apenas um treino com 20 km e 2 a 3 treinos semanais com 11/15 km. NÃO SÃO suficientes para uma prova de 53 km com 3000 metros de subida e outro tanto de descida, em terreno pedregoso.

Os dois pontos relevantes: aos 18 km enjoos e tonturas. Continuo com dificuldade na gestão da comida, em prova. Como sempre, nestas provas, todos se preocupam em parar para ajudar. Desconhecidos deram-me isotónico e companhia, por 3 km, garantindo que não seguiria sozinha, até ao abastecimento, dado estar demasiado branca. No abastecimento a canja e a coca-cola renasceram-me e reavaliei a situação. Aprendi com o Teodoro Trindade em S. Mamede.
Encontrei o Paulo que, com dores nos joelhos, tinha decidido parar. Mas seguiríamos até ao km 33 onde decidiríamos. Arrancámos a passear e a conversar. O Rui, o Gonçalo e o Ruben já iam à frente.
Quase no final do km vertical (sacaninha de subida!!!!) disse ao Paulo que estava bem e não iria parar. Mandou-me seguir.

O Paulo já fez 4 provas de 100 km e várias outras ultras. Não só nada tem a provar como sabe perfeitamente os limites de um corpo sem treino. Tomou a decisão acertada de um grande corredor.



No cimo da serra encontro o Gonçalo que tinha acabado de vomitar e estava a tentar recuperar. Seguimos juntos e, na descida também me mandou seguir. Acho que o problema é falar demais, todos me mandam seguir!!!! Lá fui. Mas o Padrinho é um resistente e lutador. Seguiu em silêncio, atrás de mim, num momento em que pensei que ia sozinha a gozar as serras e as paisagens. Correr no meio da natureza, a sentir o vento, com kms de paisagem desprovida de sons humanos é das melhores sensações que se pode ter.
O Gonçalo aproximou-se e, no final da descida, contava-lhe que, há dois anos, naquele local, tinha encontrado o Ruben.



E … 300 m depois, vemos o Ruben … a andar. Gritei-lhe pelo nome e desatou a correr, de tal forma que chegámos a S. João da Montaria e sprintou para registar o primeiro lugar no tempo parcial. Malandro! Batalha ganha no nosso campeonato privado.

Seguimos os três até ao km 42 onde me adiantei ligeiramente, o suficiente para chegar primeiro ao abastecimento dos 44 km onde a organização tentava “forçar” os atletas a não seguir, uma vez que faltavam 2 horas de prova, o frontal não constava no material obrigatório e era necessário fazer uma subida violenta de 3 km, até às eólicas, e uma descida de 5 km, com pedregulhos, até à meta. Garantiram-me que não ia acabar dentro das 11 horas e que anoiteceria antes de conseguir chegar ao topo. Hesitei. Não tinha frontal mas sentia-me bem. Por outro lado tinha a luz do telemóvel e ODIAVA desistir pela terceira vez consecutiva. Decidi subir com a maior velocidade possível por forma a adiar a escuridão. Depois … bom … depois logo se veria. O telemóvel ajudaria.



Esta a segunda aprendizagem: os músculos têm que ter memória. É a única explicação para o meu corpo ter aguentado aquela distância e aquele desnível, sem mínimos de treino adequado. E a cabeça conduz o corpo: tinha várias metas associadas “à meta”. Principalmente, as pessoas especiais que me esperavam. E a organização não teria razão em querer reter-me.



A verdade é que fiz os 8 km restantes com luz do dia tendo chegado com 10h:37 de prova.
Tive muita sorte porque o corpo aguentou. Nestas provas, à incerteza do corpo acresce a incerteza do caminho: caminhos de pedras? Ou paredes de pedregulhos? 3 km de subida numa serra desconhecida são grandes factores de incerteza. E a descida? Sabia que inicialmente eram pedregulhos, mas qual a inclinação? Os ténis agarrariam? E os buracos nas rochas? E os declives? E se, efectivamente, acabasse a luz do dia?
Estes factores trazem adrenalina. Mas tudo pode resumir-se a um risco estúpido, com consequências ainda mais estúpidas.
Mas … regressando à analogia, não é assim a vida?

E, no final … estavam lá as minhas metas … as verdadeiras e não aquela que fica junto ao pórtico.

Momento de felicidade absoluta.



Para os meus AMIGOS que, apenas por esta vez, não acabaram, digo apenas a necessária verdade: vocês já provaram, por tantas e tantas vezes, em tantas e tantas provas, o vosso enorme valor. Sim, este é um momento de irritação e frustração. Mas não vos caracteriza nem define. São seres humanos e corredores brutais. E correram 45 km nestas serras. Admiro-vos e adoro passar estes fins-de-semana de loucura com vocês. Ei…loucura decente ? E a serra estará lá, nos próximos anos. Linda de morrer.

 Quanto ao Rui: és o champ! Tu sabes …


Sandra Simões
(Setembro 25, 2017)

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